A Redistribuição do Ônus da Prova

A redistribuição do ônus da prova na modalidade de inversões por decisão judicial à luz do art. 373 do Código de Processo Civil.

I. Conceito de ônus probatório e regras de distribuição estática. II. Distribuição dinâmica do ônus da prova e suas peculiaridades. III. Momento processual adequado para decidir sobre o ônus probante e recurso cabível. IV. Conclusão. 

Introdução 

O presente artigo científico tem por escopo o estudo da redistribuição do ônus da prova, na modalidade de inversões ocorridas por meio de decisão judicial. A princípio, será feita uma sintética abordagem às regras de distribuição estática do ônus da prova, para, posteriormente, abordar as regras de dinâmica do ônus, isto é, a sua inversão. Essas regras estão ventiladas no art. 373 do Código de Processo Civil e, em se tratando de relação consumerista, no art. 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor. 

Será abordado, também, acerca do momento processual adequado em que o juiz poderá decidir sobre a inversão do ônus da prova e, consequentemente, identificar o recurso cabível. 

Por fim, importante salientar que o presente estudo encontra-se embasado por meio de leis, enunciado, doutrinas e jurisprudências atualizadas.

I. Conceito de ônus probatório e regras de distribuição estática. 

Ônus da prova é, segundo Cândido Rangel Dinamarco, “ônus da prova é o encargo, atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo ”. Na visão de Luiz 1 Guilherme Marinoni, “é possível sintetizar o conceito de ônus como espécie de poder da parte que possibilita o agir, segundo interesses próprios, não obstante a existência de norma pré-determinada, cuja inobservância pode trazer prejuízos à própria parte onerada ”. 2 

Assim sendo, a parte que não conseguir comprovar a ocorrência de fatos, estes serão considerados inexistentes para o julgamento da lide, allegatio et on probatio quasi non allegatio

Como é de conhecimento notório para os operadores do direito, a formação da cognição exauriente do magistrado deve estar baseada em fatos que foram comprovados, daí a importância de se averiguar a quem recairá o ônus probante. 

Ademais, muitas vezes o juiz decide sem adentrar, necessariamente, ao mérito (bem da vida) da demanda, a título de exemplo, se o ônus probante recaiu sobre a parte autora, caberá a ela comprovar o que alegou, caso não ocorra essa comprovação o juiz não precisará adentrar ao mérito das questões controvertidas, se houver, e nem dos argumentos apresentados na contestação; sua decisão poderá ser pautada, tão somente, no ônus da prova. 

Dada a importância do tema, o legislador do Código de Processo Civil de 2015, no art. 373, inovou ao instituir a chamada carga dinâmica do ônus da prova. Os incisos I e II do art. 373 são cópias do art. 333 do CPC/73, eles estabelecem a chamada distribuição estática do ônus da prova, de modo que caberá à parte autora o encargo de provar fato constitutivo de seu direito, e à parte ré comprovar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. 

As expressões autor e réu do referido artigo não são totalmente apropriadas do ponto de vista técnico, quando se fala em ônus da prova seria melhor se o legislador tivesse usado a expressão requerente e requerido, haja vista que essas expressões também estão atreladas a pedidos acessórios e/ou incidentais, e não somente ao pedido principal, como é o caso da expressão autor e réu da demanda. 

Às vezes o réu de uma demanda é requerente de um pedido acessório e/ou incidental que constitui uma pretensão diversa da alegada pelo autor na inicial, daí será aplicada a regra do inciso I para o réu, pois ele é requerente desse pedido. As ações de procedimento especial de caráter dúplice são os melhores exemplos, pois não há necessidade de o réu reconvir para formular um pedido contra o autor. 

II. Distribuição dinâmica do ônus da prova e suas peculiaridades. 

A previsão de redistribuição do ônus da prova na modalidade de inversão por decisão judicial, é disciplinada nos § 1º e 2º do art. 373 do CPC. Trata-se de uma exceção à regra, de modo que em determinados casos, seja por força de lei ou por decisão judicial, o ônus probante será invertido. 

O §1º do art. 373 preceitua que “nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído ” (Grifou-se). 3 

Por sua vez o art. 6º, VII do Código de Defesa do Consumidor também preceitua acerca da inversão do ônus da prova, nesse caso em favor do consumidor, desde que, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele (consumidor) hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências .4 

Importante salientar que essa hipossuficiência mencionada no CDC diz respeito à hipossuficiência técnica, vulnerabilidade; todo e qualquer consumidor é vulnerável em relação ao fornecedor e/ou distribuidor de um produto ou serviço. 

Ocorre que, a utilização da conjunção ou empregada pela legislador vem sendo debatida, arduamente, pela doutrina e jurisprudência; o que parecia algo de simples interpretação tornou-se conturbado e confuso sem razão de ser. Assim, é nítido que o legislador, ao utilizar a conjunção ou, tanto no CPC como no CDC, quis estabelecer ideia de alternatividade e não de cumulação, que, segundo a língua portuguesa, é utilizada pela conjunção e

Assim, entendo que o emprego da inversão dinâmica do ônus da prova do CPC não afastou as hipóteses de inversão das normas do CDC, muito pelo contrário, houve ampliação em favor do consumidor, que poderá, ao caso concreto, se valer das normas de inversão do CPC ou do CDC, sempre que for mais favorável do ponto de vista do vulnerável, nesse caso o consumidor. 

Ademais, ao que me parece, a discussão da conjunção ou guarda íntima ligação com um viés político, partindo da premissa de cumulação (verossimilhança do direito e hipossuficiência da parte) os interesses da parte mais vulnerável no processo seriam prejudicados. 

Não é lícito ampliar o que foi restringido pelo legislador, sob pena de contrariar a tripartição harmônica dos poderes, além de, por óbvio, contrariar a norma culta da língua portuguesa e, por conseguinte, causar insegurança jurídica. 

Portanto, à luz do caso concreto e do §1º do art. 373, caberá ao juiz decidir acerca da inversão do ônus da prova, por meio de decisão fundamentada (liame entre as fatos e a norma) observando os critérios de excessiva dificuldade ou impossibilidade para produzir determinada prova ou se a produção dessa for de mais fácil acesso para a outra parte, ou, ainda, fazer incidir o disposto na norma de inversão do art. 6º do CDC, se for relação de consumo. 

Ainda assim, importante ressaltar que há previsão de contraditório sempre que o juiz alterar a regra do ônus da prova, sob pena da decisão ser maculada por error in procedendo

Nesse sentido, segundo o enunciado do Forum Permanente de Processualistas Civis preceitua que “a importância do zelo do magistrado com o princípio da cooperação, devendo respeitar seus deveres de consulta, auxílio, prevenção e esclarecimento, relativamente às cargas dinâmicas da prova: A redistribuição de ofício do ônus de prova deve ser precedida de contraditório ”5 

Percebe-se que o referido enunciado preconiza que a redistribuição do ônus deve ser precedida de contraditório. O §1º do art. 373 não menciona que o contraditório deve preceder à decisão de inversão, muito pelo contrário, utiliza a expressão: deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. 

Ora, a parte só pode desimcumbir de algo que já lhe foi incumbido, isto é, decidido. Destarte, primeiro o juiz deve decidir sobre a inversão do ônus e, após, abrir prazo para contraditório. 

Ainda sobre o §1º, outro ponto importante de mencionar é que a conjugação verbal poderá não guarda ligação com poder-dever; trata-se de mera liberalidade do juiz inverter ou não o ônus da prova, desde que seja por decisão fundamentada. 

No que tange ao §2º do art. 373, há previsão da chamada vedação da prova diabólica, ao prever que a decisão que inverte o ônus da prova não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. 

Nessa perspectiva, já decidiu o STJ: “Processual. Agravo de instrumento. Ação de indenização. Decisão agravada que determinou a inversão do ônus da prova. Prova que recai sobre fato negativo (comprovação de que os agravantes não agiram de má-fé na divulgação de informações a respeito da perfuração dos campos de petróleo em que a empresa agravante operava), o que caracteriza “prova diabólica” de impossível/dificílima produção. Incidência do art. 373, §2º, do CPC/2015. Precedente do E. STJ. Decisão reformada. Agravo provido”. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2012961-46.2017.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Marcondes; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 43ª Vara CÍvel; Data do Julgamento: 29/11/2017; Data de Registro: 29/11/2017) ”. 6 

Adentrando num aspecto relevante e não mencionado pelo art. 373 do CPC, é a hipótese de o encargo financeiro não recair sobre àquele que foi incumbido do ônus probatório. 

Sobre o tema, Cândido Rangel Dinamarco defende a posicionamento de que o encargo financeiro para se custear a produção de determinada prova, deverá, necessariamente, acompanhar àquele que recaiu o ônus probatório. “Discute-se se a distribuição diversa do ônus da prova, ou sua inversão, deve ou não ser acompanhada do deslocamento do ônus financeiro de custeá-las, passando ou não também esse ônus de uma parte à outra. (…) na prática não transferir tal encargo à outra parte significaria não transferir o próprio ônus probatório. O texto definitivo do Código de Processo Civil não incluiu uma disposição como essa, com o quê autoriza o entendimento de que, alterado ônus da prova, altera-se também o encargo financeiro de seu custeio ”. 7

Data venia ao posicionamento do renomado autor, encargo financeiro não se confunde com encargo probante, isso porque, a depender das peculiaridades do caso concreto, a parte incumbida de produzir determinada prova pode não ter condições financeiras de custeá-las. Nesse sentido já decidiu o Tribunal do Rio Grande do Sul, “Agravo Interno. Agravo de Instrumento não conhecido mediante decisão monocrática. Ação de Despejo. Pedidos de desincumbência quanto aos custos de produção de prova pericial. Art. 1015 do CPC. Rol taxativo de decisões interlocutórias. O custo financeiro de realização de prova não se confunde com o ônus de sua produção. Negaram provimento ao recurso. Unânime. Agravo nº 70079255550, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS) .8 

Do mesmo modo decidiu o Tribunal Paulista “Requerida por ambas as partes – ônus das despesas que incumbe ao autor – alegada hipossuficiência financeira que foi afastada em agravo anterior, que manteve o indeferimento da justiça gratuita – Inversão do ônus da prova que não se confunde com a regra de repartição das despesas de perícia. Agravo de Instrumento improvido. (TJ-SP AI: 2177901-96.2015.8.26.0000. Relator Jayme Queiroz Lopes. Data de Julgamento: 08/10/2015, 36ª Câmara de Direito Privado ”. 9 

Portanto, o entendimento dos tribunais é no sentido de diferenciar as regras de inversão de ônus probante e custo financeiro das despesas da produção de prova, sempre que verificada a hipossuficiência econômica da parte que deverá produzir determinada prova de alto custo. 

III. Momento processual adequado para decidir sobre o ônus probante e recurso cabível. 

Acerca do momento processual adequada para se proferir a decisão de inversão do ônus da prova, necessário mencionar que o juiz deve decidir sobre o ônus antes de proferir a sentença, mais precisamente, o momento processual para inverter o ônus da prova é na fase de saneamento/organização do processo, por meio de decisão saneadora. Caso a inversão do ônus probante seja reconhecida em sentença, haveria fulgente violação ao princípio constitucional do devido processo legal, que compreende contraditório e ampla defesa. A distribuição do ônus da prova é regra que precede a instrução (saneamento), e não regra de julgamento. 

A respeito do tema, o STJ já decidiu: “PROCESSUAL CIVIL. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. REGRA DE INSTRUÇÃO. EXAME ANTERIOR À PROLAÇÃO DA SENTENÇA. PRECEDENTES DO STJ. 1. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do CDC, é regra de instrução e não regra de julgamento, sendo que a decisão que a determinar deve – preferencialmente – ocorrer durante o saneamento do processo ou – quando proferida em momento posterior – garantir a parte a quem incumbia esse ônus a oportunidade de apresentar suas provas. Precedentes: REsp 1395254/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 29/11/2013; EREsp 422.778/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 29/02/2012, DJe 21/06/2012 .10 

Por derradeiro, também segundo entendimento do STJ, no julgamento do Resp. 1729110, a decisão que versa sobre distribuição dinâmica do ônus da prova desafia o recurso de agravo de instrumento. 

IV. Conclusão 

Diante de todo o exposto, conclui-se que: 

a) – A inversão do ônus da prova (teoria dinâmica) é exceção à regra de o requerente provar fatos constitutivo de seu direito, e o requerido provar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos de direito do requerente. 

b) – Em se tratando de relação consumerista, o consumidor pode se valer das normas do art. 6º, VIII do CDC ou do art. 373 do CPC, sempre a que for mais benéfica para o vulnerável consumidor. 

c) – Há previsão de contraditório sempre que o juiz altera a regra do ônus da prova. 

d) – É mera faculdade, e não poder-dever do juiz alterar a inversão do ônus da prova, desde que sua decisão seja fundamentada. 

e) – É expressamente vedada a prova diabólica; a decisão que inverte o ônus da prova não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. 

f) – ônus de produção de prova não se confunde com o custeio para a sua realização. 

g) – O momento processual adequado para decidir acerca da inversão do ônus probante é a fase de saneamento do processo. 

h) – Da decisão que versa sobre distribuição dinâmica do ônus da prova, caberá o recurso de agravo de instrumento. 

Referências Bibliográficas 

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. III, 7ªed., Malheiros, São Paulo, 2017. 

MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Prova. 2ª ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2011. 

https://www.migalhas.com.br/ProcessoeProcedimento/106,MI245504,31047-Onu s+da+prova. Acesso em 24 de junho de 2019. 

https://www.migalhas.com.br/CPCnaPratica/116,MI288655,101048-Posicoes+do +Tribunal+de+Justica+de+Sao+Paulo+nos+ultimos+dois+anos. Acesso em 24 de junho de 2019. 

Lei 13.105/15 – Código de Processo Civil. 

Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor. 

Forum Permanente de Processualistas Civis.

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Dr. Luis Alfredo Souza Chiarantano Pavão. Advogado. Especialista em Direito Processual Civil pelas FMU. Fundador do escritório Alfredo Chiarantano Advocacia.